Ambiente Moderno
Exposição "Ambiente Moderno", 2021.
Galeria da Fundação Ecarta - Porto Alegre, RS.
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É interessante notar: as imagens nos ensinam muito. Na forma de mapas, ampliações microscópicas ou modelos e diagramas – os exemplos são inúmeros –, elas nos permitem enxergar conceitos abstratos, realidades mÃnimas ou áreas gigantescas. E não só. Por meio delas, podemos nos imaginar em cenas, projetando-nos em situações e lugares desconhecidos – ou sermos levados, como fazem o marketing e a pornografia, a instâncias insuspeitas do desejo.
​ Ambiente moderno​, exposição individual de Gabriel Pessoto, se alimenta desse universo, entre a pedagogia e a propaganda, que certas imagens habitam. Parte de uma investigação que se desenvolve também em outros projetos e obras, a exposição inclui instalações, fotografias, vÃdeos, GIFs e desenhos nos quais Pessoto se apropria dos conteúdos de revistas de costura e artesanato, relendo as instruções de produção e as imagens que elas publicam. As diferentes formas de apropriação desses conteúdos conferem ao conjunto de obras reunido aqui um rico cruzamento de sentidos, onde se combinam reflexões sobre a técnica das imagens, sua polÃtica e nossas construções de gênero.
Pois a apropriação estabelece seus deslocamentos e lança questões. Em algumas obras, Pessoto emula fotografias de decoração em que – ao contrário das imagens do lar ideal, onde cada membro da famÃlia cumpre à perfeição seu papel – os bordados produzidos e fotografados foram aplicados em toalhas, fronhas e guardanapos feitos de papel manilha, conhecido papel rosa usado na embalagem de produtos diversos. A matéria-prima, inadequada para a produção desses objetos, reforça o aspecto artificial dos cenários das revistas em que o artista se baseia e sublinha o caráter fantasioso de suas imagens e de seus enunciados.
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Outras obras aprofundam a desconfiança sobre as aparências que, de maneiras diferentes, atravessa a exposição. Na instalação ​mesa,​ os objetos – feitos de tecido quando deveriam ser de cerâmica, ou de papel quando deveriam ser de tecido – não disfarçam sua inadequação e disfuncionalidade. Em certos vÃdeos, os campos de cor das imagens originais foram substituÃdos por trechos de pornografia gay, como se essas deixassem entrever o que de fato se passa nos ambientes idealizados das revistas. Noutros casos ainda, o tÃtulo das obras, tomados dessas mesmas publicações, põem em evidência um imaginário de outro tempo em torno do espaço doméstico e conjugal. Desse modo, o gesto desvelador indica a dimensão polÃtica da prática de Gabriel Pessoto: pois se o universo de imagens em meio ao qual surge a obra é pautado pela pedagogia e pela propaganda, é fundamental desconfiar dele e buscar lançar luz sobre o imaginário cultural que o modela – e que ele, em troca, ajuda a modelar.
No caso de ​Ambiente moderno​, esse imaginário demarca de modo nÃtido distinções de gênero: as revistas nas quais o artista se baseia são dirigidas majoritariamente ao público feminino, responsável pelo trabalho manual delicado e dedicado ao lar. Por isso, pretendem ensinar não só bordado e decoração, mas também formas de comportamento e de vida para quem o domÃnio de certas técnicas representaria um lugar de distinção e destaque.​ ​Nesse universo, imagens e textos assumem um caráter moralizante insidioso; o artista age para desviá-los de seu propósito e invertê-los, usando-os a seu favor.
São procedimentos poéticos permeados pelo humor e pela atenção a objetos do cotidiano; a emulação de um repertório imagético e discursivo em torno do espaço doméstico e conjugal desnuda sua dimensão prosaica, em alguns casos patética, e como certos construtos que o organizam achatam, à s vezes cegamente, nosso repertório subjetivo. Assim, Pessoto a um só tempo ressalta o caráter histórico do nosso imaginário social e lança luz sobre a dimensão polÃtica das imagens e de suas técnicas de produção. Em um mundo saturado de mercadoria imaginária, são gestos fundamentais para compreender não só o repertório que nos forma, mas também o ir e vir do presente e os nossos horizontes de liberdade.
Gabriel Bogossian
Dezembro de 2020
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