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Cálamo
(Exposição Coletiva "Cálamo", 2020. Massapê Projetos - São Paulo, SP)

The expression of the face balks account;
But the expression of a well-made man appears not only in his face;
It is in his limbs and joints also, it is curiously in the joints of his hips and wrists;
It is in his walk, the carriage of his neck, the flex of his waist and knees —dress does not hide him;
The strong, sweet, supple quality he has, strikes through the cotton and flannel;
To see him pass conveys as much as the best poem, perhaps more;
You linger to see his back, and the back of his neck and shoulder-side.

Walt Whitman


As obras reunidas em Cálamo nutrem-se de experiências e imaginários relacionados à homossexualidade masculina, em uma época na qual aceleradas transformações políticas, culturais e tecnológicas reverberam na sociabilidade e na afetividade gay. Os ataques à diversidade sexual e de gênero por parte do atual governo brasileiro, além de repercutir nas políticas públicas de educação, saúde e direitos humanos, legitimam socialmente uma série de discursos e práticas homofóbicas. Por outro lado, este retrocesso ocorre em um contexto cultural e tecnológico no qual o acesso a conteúdos narrativos, informativos e pornográficos com temática LGBTQIA+ cresceu de modo substancial, e a popularização dos aplicativos de encontros baseados em geolocalização fluidificou as fronteiras entre espaço público e espaço privado, tornando o encontro sexual entre homens (quase) tão acessível quanto uma série romântica com protagonistas gays no Netflix ou um vídeo de suruba da Bel Ami no Xvideos.
Os avanços e retrocessos em disputa no contexto sexopolítico contemporâneo são, seguramente, atravessados por novos vetores. Mas quando olhamos para a história das masculinidades, observamos uma série de tensões não resolvidas, desejos recalcados e afetos paradoxais que chegam à nossa época como sintomas do esgotamento de seus próprios parâmetros. Instalados no espaço que preserva as características arquitetônicas de uma antiga garagem, os objetos e vídeos de Élcio Miazaki e Tales Frey investigam contextos culturais e institucionais privilegiados na construção das masculinidades hegemônicas. Através de uma atenção às interações corporais entre homens e aos objetos caros a estes espaços e em diálogo com as linguagens da performance, os artistas tornam visíveis as pontas soltas do desejo que, não apenas escapam ocasionalmente, mas constituem os ambientes da caserna e da academia de boxe.
O segundo grupo de obras, exposto na galeria interna, sublinha aspectos íntimos e subjetivos da experiência contemporânea da homossexualidade, tensionada por mutações culturais que passam pela mediação tecnológica dos encontros sexuais, pelas transformações na indústria pornográfica pós-internet e pela emergência da imagem como tecnologia privilegiada para a construção de si. A produção pictórica de Adriel Visoto narra interações cotidianas do próprio artista com os ambientes e objetos que o circundam. A escala diminuta destas imagens remete tanto à intimidade de uma escrita de si, quanto às imagens que se precipitam ligeiras nos feeds de redes sociais que seguramos na palma de nossas mãos. Bruno Novaes também trabalha a partir de uma experiência autobiográfica, que é tensionada por um modo de organizar visualmente o conhecimento, caro ao universo escolar. A documentação sistemática de encontros sexuais resulta em uma espécie de cartilha na qual um abismo separa as palavras e as coisas, sublinhando a disjunção entre o íntimo e institucional. Esta ênfase na disjunção como aspecto estruturante da experiência gay aparece também nas vídeo instalações de Gabriel Pessoto. O artista se apropria de uma gramática visual que foi buscar em padronagens, bordados e ornamentos de roupas de cama, mesa e banho que, reunidas em enxovais, funcionam como símbolos de um ideal romântico de amor. Esta investigação formal converte-se, nas obras aqui expostas, em janelas e grids nos quais o artista insere conteúdo audiovisual pornográfico, preservando a tensão entre dois modos de amar que a tradição ocidental insiste em separar.
São múltiplos os modos como o contexto contemporâneo - permeado por avanços e retrocessos - e a história da masculinidade atravessam as pesquisas aqui reunidas. É preciso olhar para esta produção como cronistas de tempos vindouros, capazes de ver sob essas imagens e objetos as marcas deixadas pelo esgotamento dos padrões de masculinidade, pelas possibilidades e interdições afetivas de nossa época. Cálamo é o nome de um conjunto de poemas de Walt Whitman, frequentemente referido pela crítica pelas ambiguidades e tensões homoeróticas que condensa. Cálamo também se refere ao mito de Kalamos, filho do deus-rio Menandro, que era apaixonado por Carpo, um jovem de rara beleza. Certo dia, quando nadavam no rio, Kalamos tentou ultrapassar Carpo, que se afogou na competição. Conta o mito que a dor de Kalamos foi tão grande com a morte de seu amor, que ele definhou até se transformar em uma planta na margem do rio que, até hoje, é conhecida pelo nome de Cálamo e preserva uma forma fálica.


Ícaro Ferraz Vidal Jr.
Janeiro de 2020

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Vista da exposição Cálamo, Massapê Projetos, São Paulo. Foto: Julia Thompson.

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