Gabriel Pessoto e a dialética da imagem
Exposição "Realidade Virtual", 2022.
Temporada de Projetos do Paço das Artes - São Paulo, SP
O ambiente é doméstico, disso não há dúvidas. No entanto, resta pouco ou nenhum conforto. Estão ali paninhos, bordados em lã, colcha e travesseiros, tudo o que compõe o repertório de caprichos com as superfícies da casa. Se somos capazes de reconhecer tais objetos, eles também figuram como ecos distantes e pixelados de seus itens originais, desprovidos de suas funções; são meras representações projetuais. Na presente Temporada de Projetos, Gabriel Pessoto transformou uma sala do Paço das Artes numa kitnet similar a diferentes recursos de simulação virtual – da maquete de arquitetura à brincadeira de casinha, do The Sims ao clássico Sketchup. A instalação propõe negociações delicadas entre imagem e poder, público e privado, desejo e corpo, casa e subversão, sobretudo através da coexistência de mídias de naturezas distintas e conflituosas: o bordado artesanal e a imagem digital.
Para além do vínculo explícito com as técnicas artesanais, interessa ao artista o modo como o bordado se aproxima da visualidade pixelada de imagens digitais precárias, de baixa resolução. Ambos põem-se de pé a partir de um aglutinamento de códigos organizados sobre uma superfície; se organizam a partir de uma gramática específica, orientada por receitas e partituras mais ou menos autonomizadas. Na condição de um todo constituído por várias partes, eles chamam atenção para uma certa arquitetura da imagem, dando a ver sua condição ficcional estruturante. No bordado e no pixel, vemos não apenas algo representado, mas também a presença de uma técnica que não quer se esconder, exibindo a nós os percursos de construção da imagem e flertando com os limites entre figuração e abstração.
Ao contrário das perspectivas moralizantes que buscam dicotomizar e binarizar as relações entre o analógico e o digital, o artesanal e o virtual (a clássica oposição conceitual entre “virtual” e “real” — um mundo real, físico ou corporificado e outro, virtual, digital e desterritorializado), Pessoto opta por um caminho que não os separa, antes busca explorar a potência limítrofe e adjacente entre um e outro, isto é, o território de conflito propositivo que os mantém em tensão, a um só tempo questionando-os e afirmando as suas potencialidades.
Ainda no que tange à técnica, cabe reconhecer que, enquanto parcela da produção artística contemporânea, ao aproximar-se das questões que orbitam a "tecnologia", tende a ter uma abordagem fascinada pela virtuose potencial das ferramentas, buscando experiências de simulação cada vez mais satisfatórias, Pessoto aposta numa estratégia contrária, interessado em procedimentos que não buscam enganar o espectador, mas dá-lo a oportunidade de investigar como as coisas são feitas, suspendendo qualquer relação de passividade alienante ou anestesiante. Isso não apenas se expressa na condição de obra "tecnológica precária", que desconfia de si mesma, mas também no modo como a técnica permite reconfigurar noções de temporalidade e duração das imagens. Seus bordados de lã reproduzem frames de vídeos e fragmentos de imagens e emojis que circulam em contextos de rápida apreensão de consumo e descarte, como sites pornô e mídias sociais de modo geral. Elas integram uma nova cultura de participação, pautada essencialmente pela disputa de atenção. No feed, uma foto está fadada a ser imediatamente substituída por outra, e outra e outra, de modo que fica difícil fixar qualquer coisa. Se as fotografias poderiam ser aliadas da produção de memória, elas provam cada vez mais o contrário: registramos para esquecer. Cada vez mais, não fazemos fotos para consultá-las depois, mas sobretudo para produzir informação, lidar com a ansiedade e atestar o presente. Com
milhares de informações oferecidas a nós a todo momento, em meio a um grande número de banalidades, o que nos detém é aquilo que nos surpreende. É a tal lógica da recompensa: rolamos o dedo no feed infinito até que apareça algum traço de identificação, excitação ou bajulação. Para um conteúdo ser de fato visto, ele precisa nos capturar rapidamente e, de preferência, produzir reações emocionais. Além disso, a nível coletivo, vivemos essa necessidade de confirmação de nossa existência online, uma existência pautada pela superexposição. Mas trata-se de uma prática compulsória, e mesmo aquilo que nos captura tende a durar poucos segundos. Ao transpor a lisura da imagem digital para o bordado, fazer lento e processual, Pessoto faz a representação durar, estica e garante a sua sobrevivência, como se a redignificasse. Em alguma medida, o bordado não apenas desloca o tempo dessas imagens, mas também lhes confere corpo e espessura, o que significa que elas deixam de ser mera ferramenta de significação para também figurar como recurso de presentificação. Talvez seja o desejo de corporificar a imagem até que seja possível fazer caber nela a singularidade das nossas próprias vidas e vulnerabilidades; ponto de encontro fundamental entre realidade e fantasia.
Tal procedimento de redignificação ocorre não apenas em relação a circulação e recepção desse material na internet, mas também no que diz respeito aos temas e assuntos retratados, em geral voltados aos enlaces entre afeto e sexualidade, ingenuidade e intimidade erótica. Amores perfeitos, por exemplo, é um trabalho composto por dois bordados de lã que representam travesseiros extraídos de um frame de um filme pornô. Eles expressam aspectos muitas vezes desconsiderados no consumo de imagens sexuais, como afeição e cuidado (e, quem sabe, a condição de sujeito daqueles que encenam os objetos dos nossos desejos) embaralhando o papel previsto para esse tipo de conteúdo. Além disso, ao se tratarem de filmes majoritariamente caseiros, eles tendem a nublar os limites entre dentro e fora, casa e espaço público. A presença imperativa de produção e consumo de imagens digitais no espaço doméstico, através do celular-prótese, exige que reconfiguremos as noções de intimidade e domesticidade enquanto instâncias de proteção, segurança, abrigo e ninho – o mundo nunca esteve tão dentro de casa, com seus conflitos e ameaças; e, por outro lado, nunca foi tão fácil produzir intimidade com coisas e pessoas tão distantes, mas que habitam nosso quarto a partir de um só clique. Se a casa é o espaço que cria as raízes do homem, o primeiro lugar de construção da subjetividade, “nosso canto no mundo”, como queria Gaston Bachelard, ela é também o território das primeiras disputas e conflitos contidos no projeto moral de família e cidadania; a casa como um convite para conhecer os cantos e quinas do desejo, a pele da mobília e das paredes; terreno político por excelência.
Algo da ordem da intimidade também está presente na paleta de cores de Pessoto. A predominância de rosas e lilases faz lembrar as mucosas que revestem as cavidades internas do corpo e que estão abertas para o exterior, sobretudo as urogenitais, com texturas e secreções que compõe o imaginário erótico. Por outro lado, são tons que sugerem ingenuidade e fofura, por vezes a partir de um viés infantilista, o que situa o trabalho num território de perversão e ambiguidade. Há quem se aproxime desses bordados tocado pelos afetos contidos na materialidade da lã (memórias de uma casa-ninho) e, pouco a pouco, vá percebendo que as imagens ali contidas profanam as fantasias do lar. E, ao contrário, há quem se interesse antes de tudo pelo seu aspecto erótico, embora vá encontrando, ao longo do percurso, traços de docilidade e maciez. Não se trata de afirmar uma coisa em detrimento da outra, mas de produzir um encontro entre tais imaginários.
Também é preciso considerar o modo como Pessoto explora, junto às imagens mais figurativas, padronagens abstratas de padrão decorativo. O repertório (por vezes de gosto idílico) presente nos paninhos de prato e todas as demais superfícies passíveis de investimento decorativo de uma casa reflete o esforço pelo cuidado e a construção de determinados clichês de lar e feminilidade (a casa florida e acolhedora, sem conflitos, instituição inabalável e tenra). Quando o artista aproxima tais exercícios de imagens íntimas de contorno político mais explícito, termina por nos chamar atenção para o fato de que, ao contrário de inofensivo, o "decorativo" também está mergulhado em investimento subjetivo, dotado de construção de valores.
Trata-se de uma obra em construção que aborda algumas das questões improrrogáveis do nosso tempo. Realidade Virtual é exemplo manifesto disso e, no entanto, há uma recusa em tratar assuntos a partir de caricaturas e tematizações literais. Sua potência é estruturalmente dialética, isto é, aposta na potência contraposição e contradição entre sentidos simbólicos, dimensões técnicas e discussões sócio-culturais. Sobrepostas e contaminadas, as categorias agenciadas por Gabriel Pessoto nos sussurram, em sua coreografia particular, de que não há imagem inofensiva.
Pollyana Quintella
Setembro de 2022